Leitores

Flag Counter

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Martin Maconha



          O professor andava perambulando pela rua; era um rasgo atravessando-a naquela noite morna e sem luz. Uma voz artificialmente esganiçada surgia:

Acenda um baseado pra iluminar nossa alma
Esquecida numa cadeira de rodas.
Olhando pra Avenida Aniquilação,
Você só verá rastros de luz
De corações partidos.

Eu queria ser todos eles,
Só para poder ter seus segredos;
porque o mundo foi feito para os mais fracos.
Os mais fortes nos destroem,
Porque nunca tiveram um coração partido.

          Escuridão. Pessoas para fora, passavam horas a fio querendo mais informações. Uns diziam que era Jesus voltando, o mundo estava para acabar; outros diziam que era um apagão generalizado, mas não sabiam exatamente o motivo; alguns falavam em nova guerra mundial, nova ordem mundial, terapia ocupacional para medir a tolerância do povo, hora de matar “insetos”

          “ALÔ, ALÔ! MEU POVO, VENHO AQUI PARA DIZER QUE HOUVE UM APAGÃO EM TODO NORDESTE PROVOCADO POR UM CURTO-CIRCUITO.”

         A cantoria não cessava, era o carro de som de Rodofão 53.666.  Subia e descia ruas; a região, na sua maioria, já informada, apagou-se do apagão. Martin Maconha ainda perambulava pelas ruas. Rodofão 53.666, farol alto, ao vê-lo, disse:

          — À essa hora na rua... Está perdido, camarada?

       — Estou passeando. Sentido o cheiro do gozo. Aliás, tinha um casal ali, ó!... no capricho, na praça. Mas o que adianta descrever se nada podemos ver? — Rodofão 53.666 olha para o motorista e começam a rir.

          — Você está bêbado. Vamos deixar você em casa, camarada.

          — E vocês, tão indo pra onde?

          — Vamos para casa.

          — Eu também.

          — E onde você mora?

          — Bem aqui, no inferno.

          Rodofão 53.666, fala baixa, para o motorista:

          — Deve ser um mendigo, vamos deixar pra lá. Vamos nos mandar daqui.

          — Fique com Deus, senhor. — E o motorista acelera.

          — Deus? Deus é ateu. Ele é o mais ateu de todos nós.

          Seguem seus rumos. Martin Maconha segue sua caminhada em direção a um casebre vermelho-cabaré; encontro casual com Ju Osso E Canela. Sabem, só há um tipo de estabelecimento que permanece aberto quando acontece esse tipo de coisa, de “imprevisto”.
          — Vamos lá, meu bem. — Pegando na mão dela e adentrando um dos quartos.
          — O que você vai querer hoje?
          — Você não é a Ju Osso E Canela? — Reconhece que era uma voz diferente.
          — Sou Gil da Guenta Três Oitão. A Ju já tá distribuindo por aí. Qual a de hoje, querido?
          — Nada, só com ela. Já me acostumei, sabe como é. Obrigado. — Saindo do cabaré.
          À mercê do vento, Martin Maconha segue viagem, sem rumo. Ladrões de fios de cobre o vê como uma sombra perdida na escuridão. Uma nuvem em forma de banana tapa a xana da noite; começa a cantar:

Tá mais escuro que os Uivos de Debord torto.
Tá mais escuro que dormir com Rivotril.
Tá mais escuro que estar de transtorno.
Tá mais escuro que levar no capuz de fuzil.

         Imagina ver alguém dormir ao final da rua na qual se encontrava; coberto por uma casa de muro alto de bolinhas de vento, apoiando a cabeça num travesseiro de latinhas, arrodeado de sacos pretos. Sua miopia imaginava um borrão à frente às escuras, mas conforme se aproximava via aquilo que pensara; menino franzino... não era possível descrê-lo, além do mais — importaria, afinal, em plena escuridão? só sombras, sombras na escuridão. Sua dor era um jogo à parte, um jogo que ele não podia jogar; um jogo que era jogado por ele... até mesmo a esperança que lhe restava era vendida pelos profissionais desprovidos de alma, songamongamente; agora o menino tem alma, porém sua esperança tornou-se endividada, pois ela sequer é dele, mas, ao contrário, é extraída, transformada num jogo por fazedores de estórias dos mais variados ramos; sua passividade era anônima, servia de base e material para historinha que não podia ler. Não sabiam do que ele precisava exatamente, só do que eles precisavam. O jogo é: arrecadamos sua esperança, ou o que restou dela. Um jogo codificado.

          — Posso sentir o cheiro de sua dor de longe, sei que está acordado. Seria impossível estar no seu lugar, quer dizer, me imaginar no seu lugar, porque jamais poderia sentir o que você sente. Mas não vai ser sempre assim, tenho certeza.

          — Só queria encontrar minha mãe... me perdi dela quando ficou tudo escuro... me escondi aqui com as latinhas que consegui hoje.
        — Assim que a luz voltar a gente vai procurar por ela. Tá com fome? — Tirando um sanduíche embrulhado do casado esfarrapado.
          — Certeza senhor? não vai querer nem um pouco?
          — É todo seu, meu amigo!
          Neste momento Martin Maconha olha para si; percebe que essa foi a maior vergonha amarga que sentiu em sua vida.
          — Sabe... a mãe disse que indo pro colégio vou poder sair daqui... quero tirar a gente daqui, mas nunca acontece. Tem vez que não temos o que comer...
          — Já ajudei outros colegas seus, de alguma maneira; posso te ajudar de alguma forma também. Sabe ler e escrever?
          — Sei não senhor.
          — Tem algum papelão ou papel fácil por aí? Vou te ensinar mágica! — Sai procurando ao redor do menino, nos sacos pretos.
          — Não mexe aí senhor. É pra vender, é do pai. Nossa garantia... de alguns dias sem passar fome.
          — E ele tá onde?
          — Foi procurar minha mãe. Mandou eu esperar ali mais pra baixo e acabei ficando aqui, pois ele num voltou... tive que improvisar.
          — Então vamos improvisar, meu amigo!
          Carrocinha passando farol alto para dar um oi, vagabundos. Metralhando luzes pela rua; sai dois de trás, enquanto a luz crava no menino, no seu novo amigo, nas sacolas e afins. Pés rachados, calejados, cor negra suada, seca, cor de bosta enferrujada, eca, eca, cuidado, cor suja, rabugenta, fedida, sebosa, tarada, ladra, homossexual, burra, escrava, cor de merda —
          “Corre, corre, corre!”, pegando na mão do menino, correm escuridão adentro.
          Pum, pam, pow, pam, pam, pum, pow, pum, pow, pam, pow, pow, pow, pam, pum, pow, pow, pow.
          “Mãe... eu tô indo pro colégio.”

  David Vladv




Nenhum comentário:

Postar um comentário